Regis Fernandes de Oliveira, desembargador aposentado e ex-presidente da Apamagis e da AMB
Muito se fala sobre a politização do Judiciário ou a judicialização da política. A perspectiva é real. O juiz não é robô nem está indiferente à realidade. Um dos grandes textos que já li é “A ideologia alemã” de Marx. Enquanto Hegel se debatia com o idealismo, Marx preocupava-se com o homem real, de carne e osso (expressões do autor).
Muito se escreveu sobre o juiz (eu mesmo – “O juiz na sociedade moderna”, ed. FTD, ed. 1997, Carnelutti, Antoine Garapon, José M. González García). Alguns acham que é um ser alienado da sociedade e que não pode participar da vida política. Outros entendem-no distante de tudo e de todos, isolado.
Sempre me bati pelo juiz incluído na sociedade. Que a discute, que pondera sobre ela, que se relaciona com a imprensa, que se posiciona politicamente. Uma coisa é o juiz sentenciador (este deve ser imparcial); outra é o ser embutido na sociedade e que dela faz parte, com seus defeitos e virtudes. Nem por outro motivo escrevi sobre as paixões no direito (“Interpretação, paixões e direito”, ed. Novo Século, 2020). O magistrado (a) é um ser como qualquer outro, com sua consciência, com sua compreensão dos fenômenos e sua interlocução com a sociedade.
Sempre pensando de tal forma foi que resolvi participar da vida associativa. É através dela que o magistrado togado se transforma em ser ativo e consciente. O que isso significa? Manter boa cultura, aprimorar-se na leitura dos textos, fazer pós-graduação, imiscuir-se em leituras plurais, conectar-se com o mundo e, enfim, opinar sobre tudo que está a sua volta. O magistrado (a) que apenas lê a lei é pobre. Deve interpretá-la e inseri-la na vida, como quis Marx.
A participação associativa proporciona isso. Sair da prisão exclusiva da lei. Viver outros ambientes, tais como o relacionamento com integrantes dos outros poderes da República, com a imprensa, com empresários, com entidades de benemerência, com a pobreza, com a insanidade. Por isso que na pós-graduação da USP levo os alunos para visitar a cracolândia para que vejam como é a realidade. Na saída da faculdade já se sente a brutal diferença entre ricos e pobres. Logo, o direito não pode ser um só. Há vários. A leitura de romances, filosofia, sociologia, teatro nos fornece instrumentos para melhor compreensão da realidade e do papel do juiz.
Por isso é que participamos ativamente da elaboração da constituinte de 1988. Praticamente moramos em Brasília em contato com todos os parlamentares, líderes, presidente e vice, integrantes da Mesa do Congresso, do Senado e da Câmara. Imiscuímo-nos nas discussões congressuais para a elaboração da Constituição. Conversa difícil, pela teimosia em ver na magistratura uma classe alienada, passiva e aproveitadora, que não se expõe, que exige e que é identificada como classe privilegiada e que dá de ombros às diferenças sociais.
Posso entender que haja juiz que assim sinta. Mas, a maioria da classe não, e tivemos que levar ao constituinte o sentimento solidário da magistratura. Cometemos a ousadia de mostrar que o juiz é um ser preocupado com a sociedade. De carne e osso. Obtivemos conquistas: equiparação percentual de vencimentos com o STF; manutenção de prerrogativas funcionais que nos queriam subtrair; manutenção de magistrados do Estado nas funções de juiz eleitoral e outras tantas conquistas.
O trabalho foi insano, mas compensador. É que o juiz não compreende os demais Poderes e estes não compreendem o papel do juiz. Para este os parlamentares são desonestos e vivem de negociatas; para aqueles o juiz é um acomodado e procura apenas benesses pessoais.
A Apamagis, que tive a honra de presidir, assim como a AMB e a latino-americana, propicia ao magistrado momentos de participação ativa. O mais importante a meu ver é a inserção do juiz no amplo debate de temas centrais, como literatura, teatro, filosofia, história, sociologia, todos ramos do conhecimento que têm estreita relação com a função de julgar. Como não saber que o júri nasce no teatro grego bem como a decisão de Athena – Minerva em Roma (veja Ésquilo, “As Eumênides”), e que o conceito de princípio e de superioridade dos direitos constitucionais já tiveram previsão na “Antígona” de Sófocles quando afirma que não compreende que um decreto de um mortal pudesse revogar o direito dos deuses (alguma semelhança com princípio e regra? Ou com o conceito de direitos fundamentais?).
Os problemas só podem ser solucionados se colocados em um contexto. Como disse Morin (Edgar), que completou cem anos no último dia 8 de julho, não se pode pensar empilhando fatos, mas a compreensão dos problemas há de ser interdisciplinar, diversificado e organizado para se ter o que rotula de pensamento complexo.
O magistrado não pode, por isso, ser mero leitor de leis. Sempre entendemos que seja um ser integrado na sociedade. Jamais pode ser parcial e não é neutro. Parcial no sentido de distorcer análise de fatos que possam favorecer a uma das partes; neutro no sentido de pretender ser imune a suas paixões, seus sentimentos, seus desejos. Esse é o juiz de carne e osso, o homem real a que se referiu Marx.
O embate associativo faz parte do dia a dia da entidade de classe. A persuasão e o convencimento que temos que transmitir aos deputados e senadores, as apreensões dos juízes, o trabalho excessivo, o esgotamento intelectual, a exigência da sociedade que tornam a atividade altamente desgastante.
O escudo para tudo isso é a entidade de classe. Ela tem feito um trabalho primoroso ao longo dos tempos. Nem sempre perceptível para o associado que se alheia e critica o desempenho de seus dirigentes. Sequer o analisa. Em crítica aleatória, despossuída de razão e gratuita menospreza o trabalho associativo. Como é cômodo criticar os parlamentares e chefes do Executivo. Nunca olhamos para nós mesmos. É mais fácil lançar crítica aos outros. É cômodo justificar nossos erros apontando os dos outros.
Já estou distante da magistratura há anos, mas nunca me alienei das preocupações com a classe. Adoraria despertar em todos o estímulo para uma participação efetiva na discussão dos problemas da entidade, da inserção política, das preocupações não somente com vencimentos, como é a praxe, mas com a depuração da magistratura para que se constitua, de verdade e não apenas na teoria, em norte para a sociedade.
Quisera dizer que estou sonhando acordado. Mas, é bom sonhar.